Nos últimos meses, a discussão a respeito da reorganização das universidades federais tem ocupado as mentes não só dos dirigentes do Ministério da Educação mas também dos professores, funcionários e alunos das universidades brasileiras. Até a década dos 60 do século passado, a grande maioria das universidades brasileiras era constituída pelas universidades públicas, estaduais e federais. As particulares, basicamente confessionais e filantrópicas (PUC, Mackenzie), eram minoria. Hoje a maioria dos alunos (75 a 80%) estuda em faculdades particulares, mas boa parte da ciência brasileira continua a ser feita nas escolas públicas.

Assim, levantamento feito há poucos anos pelo Instituto de Estudos Avançados da USP (Carvalho da Silva e outros, 2000) mostra que 94,7% da produção científica do País na forma de trabalhos publicados em revistas internacionais vêm de universidades públicas, bem como 89,2 % dos doutores formados no País. Isso mostra ampla predominância da produção dessas universidades pelo menos na área das ciências básicas. A atual discussão sobre o papel e o futuro das universidades federais deve levar em conta essa realidade.

É reconhecido em todo o mundo que a função das universidades não é somente a formação de profissionais de níve superior, mas também a criação de conhecimento, principalmente porque essa criação mantém os professores atualizados e capazes tanto de efetuar a transmissão de conhecimento quanto dar uma verdadeira formação aos seus alunos. Dessa forma, os alunos podem adquirir não somente conhecimentos livrescos mas também uma criatividade que poderão aplicar, por exemplo, nas atividades profissionais em empresas, levando à criação de inovação científica e também de inovação tecnológica, tão essencial para nosso desenvolvimento econômico. É claro que este tipo de formação não é prerrogativa de universidades públicas, pois há várias particulares (caso das confessionais citadas acima) que têm méritos nessa área, embora sua participação na produção científica nacional ainda seja, na grande maioria dos casos, incipiente. Também seria um exagero dizer que todas as universidades públicas apresentam características de excelência , pois muitas, particularmente fora das regiões Sudeste e Sul, apresentam ainda muitas deficiências. Mas as condições necessárias para a criação de verdadeiras universidades, isto é, regime de tempo integral, pós-graduação, criação de infra-estrutura adequada para pesquisa (laboratórios, bibliotecas, biotérios, oficinas especializadas, apoio técnico), e perspectivas adequadas de progressão na carreira, são encontradas e apoiadas mais amplamente nas universidades públicas.

A conseqüência dessas considerações é a seguinte: se quisermos manter neste País universidades que mereçam esse nome temos que apoiar as universidades públicas em geral, tanto estaduais como federais. Mesmo que elas sejam caras de manter e responsáveis por só 20 a 30% da formação de profissionais de nível superior do País? Certamente, mesmo nessas condições, pois elas concentram setores exponenciais nas áreas de ciência e cultura e servirão para fecundar os demais setores , particularmente o ensino superior particular, funcionando como modelos de universidades reais e exemplos a serem seguidos. Por essa razão a separação das universidades públicas em universidades de pesquisa e universidades de ensino, proposta alguns anos atrás, não faz sentido. No mundo das universidades e demais instituições de ensino superior, pelo menos as estaduais e federais devem continuar sendo instituições onde a pesquisa necessita sobreviver ao lado do ensino. Em muitos Estados só há uma dessas universidades, e conheço pessoalmente núcleos que trabalham muito bem em várias universidades de Estados mais pobres, como Bahia, Pernambuco, Pará , Rio Grande do Norte , Paraíba e Sergipe – certamente há outros que não conheço –, que mesmo com algumas deficiências de infra-estrutura podem sobreviver com auxílio de entidades federais de apoio à pesquisa.

Mas não basta só se lamentar e cobrar mais apoio às universidades públicas. Há nelas algumas limitações e dificuldades já centenárias que devem ser discutidas abertamente e combatidas com eficiência. Entre elas estão as que discuto a seguir.

Uma questão da maior importância para as universidades é a luta pela autonomia, não só acadêmica, mas também financeira. A vantagem desta autonomia foi amplamente comprovada pelas universidades estaduais paulistas, às quais foi outorgada no governo Quercia, na base do que já vinham recebendo do erário do Estado naquele momento, o que era considerado insuficiente para suas necessidades. Apesar disso, as universidades conseguiram se adaptar, obtiveram na Assembléia Legislativa uma porcentagem do ICMS maior que o valor original e estão vivendo de forma razoável. É bastante óbvio que nunca se chegará a uma situação considerada plenamente satisfatória ou mesmo ideal em um país com tantas deficiências como o nosso. Mas a vantagem de poder estabelecer uma política própria de gestão de pessoal, de salários, de equilíbrio entre gastos com pessoal, investimentos e manutenção é enorme, considerando a grande capacidade técnica das universidades no setor administrativo. Só assim será possível fazer um planejamento a longo prazo, em paralelo à luta por uma parcela dos meios do erário que possa ser considerada adequada. Além disso, cada vez mais será necessário que as universidades consigam meios que extrapolem o Tesouro, tradicionalmente exaurido, e façam isso por sua própria iniciativa e não por imposição de organismos centrais, que não podem conhecer adequadamente as condições locais em todo o País. Por exemplo: as universidades têm condições de prestar serviços para a população em geral e para as empresas, o que é amplamente realizado por várias fundações. Os fundos gerados dessa forma poderiam ser mais úteis às universidades se aplicados às suas necessidades gerais e não só aos grupos que os obtêm. Para as universidades federais a autonomia será até mais importante do que para as estaduais, dadas as grandes diferenças das condições dos diferentes Estados e das universidades dentro deles.

A própria carreira acadêmica necessita de aperfeiçoamento nas universidades federais , e isso é algo que elas poderão efetivar com sua autonomia. Nos dias de hoje, pelo menos nas melhores universidades, quando um novo docente é contratado, já o é muitas vezes com o doutorado completo, o que lhe dá o nível de professor adjunto nas federais. E esse é praticamente o nível terminal da carreira, pois o nível de professor titular é alcançado por poucos, já que depende de criação de cargos pelo governo federal. Assim, a grande maioria de professores não tem praticamente oportunidade de progresso na carreira durante toda sua vida. Essa situação tende a se perenizar, pois os níveis de instrutor e professor assistente (para quem possui o mestrado), que seriam os passos iniciais da carreira, estão praticamente em extinção , em função da grande competição por cargos e da política da Capes, que tende a privilegiar o doutorado direto. Assim, torna-se necessária a criação de um passo intermediário entre o atual professor adjunto e o titular, como é o caso do livre docente das universidades estaduais. Quando um doutor obtém seu título, é na maioria dos casos um jovem que completou a sua formação pós-graduada, tendo trabalhado até aí sob orientação de professores mais experientes, completando sua formação como pesquisador, mas estando ainda longe de atingir sua independência acadêmica e autonomia como pesquisador. Um concurso como o da livre docência, é claro que filtrado de alguns aspectos quase que medievais de seu formalismo , poderia ser um concurso que avaliasse a capacidade de trabalho independente em ciência e cultura, representando a maioridade intelectual do professor, com base principalmente em seu currículo, isto é, na sua produção científica e intelectual autônoma. Esses professores é que poderiam também ter um papel da maior importância na política universitária, o que é muitas vezes privilégio dos professores titulares ou é açambarcado por docentes que têm pouca projeção científica ou intelectual e interessam-se apenas por por fazer política na universidade .

Nosso sistema de pós-graduação tem sido elogiado quanto a sua eficiência, não só no País mas também no Exterior. Este sistema certamente não é um problema para a Universidade , particularmente da pública, mas um dos seus grandes sucessos. Tem conseguido elevar acentuadamente a formação de mestres e doutores, que precisam ser utilizados tanto nas próprias universidades que os formam como na indústria e seus centros de pesquisa , infelizmente ainda muito escassos entre nós. Portanto, o fortalecimento das universidades públicas é essencial para dar um sentido prático à pós-graduação, afim de melhor aproveitar o excelente contingente humano que é formado. E não se pode afirmar que devemos reduzir o ritmo de formação de mestres e doutores, pois em comparação a países do primeiro mundo e mesmo países que estão agora iniciando seu desenvolvimento técnico-científico, como Coréia e China, nosso número de Ph.Ds. é muito reduzido. O que devemos é criar condições para melhor aproveitá-los, tanto no sistema público quanto privado, pois sem isso não haverá desenvolvimento econômico. Esses pós-graduados são necessários com urgência mesmo no sistema das universidades públicas, quando se considera não somente as vagas existentes, mas a necessidade de docentes capazes, bem formados, no sentido de substituir outros provenientes de sistemas de formação deficientes. É para nós doloroso ver quantos candidatos de qualidade, muitos com pós-doutorado no Exterior, competem freqüentemente sem sucesso , pelas poucas vagas existentes. Daí a necessidade de as universidades em geral realizarem reavaliações criteriosas e permanentes do corpo docente, que poderiam resultar inclusive na exclusão de alguns, por não se adaptarem à proposta definida para a universidade pela sociedade, que deve ser a coexistência de ensino e pesquisa, liberando assim, novas vagas para pessoas jovens que melhor se adaptem ao projeto proposto.

Outro sistema essencial para a pesquisa nas Universidades e que pode ser considerado um sucesso parcial é o de apoio à ciência e tecnologia, de uma maneira geral. É um sistema que inclui tanto mecanismos federais, como o CNPq, a Capes, a Finep e outros (Ministério da Saúde, por exemplo), como estaduais, incluindo aí as FAPs (Fundações de Amparo à Pesquisa dos Estados), das quais a Fapesp é o brilhante modelo. Discuto aqui esse sistema pois constitui um apoio fundamental e eficiente das universidades brasileiras, sejam públicas ou privadas, por oferecer os meios financeiros que permitem executar os mais diferentes projetos. Tem a grande vantagem de ser independente da política universitária, conseguindo de maneira bastante eficiente distribuir suas verbas de maneira justa e baseada no mérito das propostas e em sua relevância para o desenvolvimento científico, cultural e tecnológico do País. Têm surgido ultimamente críticas em relação a alguns aspectos do sistema, particularmente em relação ao privilégio de certos grupos, principalmente em centros mais desenvolvidos, em relação a outros mais periféricos. É essa uma questão ligada ao reduzido tamanho de nossa ciência, de modo que praticamente todos os assim chamados "pares", isto é, pesquisadores que trabalham de maneira reconhecidamente eficiente num dado campo, se conhecem, e podem ser amigos ou inimigos uns dos outros, beneficiando "amigos" e prejudicando "inimigos" ou desconhecidos. No entanto, esse sistema tem se revelado melhor que qualquer outro e é o utilizado em todos os países que usam sistemas de apoio desse tipo, particularmente nos do primeiro mundo, mas também em muitos latino-americanos, como México, Argentina, Chile e Venezuela. E é obvio que esse tipo de desvantagem só será exacerbado se transferirmos a distribuição das verbas às próprias Universidades, como recentemente proposto por uma docente da USP. Por outro lado, é necessário reconhecer que muita da insatisfação que surge devido à distribuição das verbas disponíveis nessas entidades financiadoras se deve principalmente à escassez de recursos, pela limitação das verbas federais que chegam a elas e pela ineficiência e pobreza de muitas das FAPs dos Estados. Assim, a competição pelo apoio à pesquisa se torna feroz, e muitas vezes deixa de fora jovens recém-doutorados que precisam iniciar vida científica própria, e entram num círculo vicioso muitas vezes penoso: não recebem apoio porque não estão produzindo e não podem produzir porque não possuem meios. É a questão do cobertor curto das famílias pobres, característica dos países do terceiro mundo. Essa grande competição por meios, por outro lado, também tem seus benefícios, pois o aumento da competição tende a melhorar a qualidade dos projetos, dando muito valor também a uma produção científica e cultural maior em termos de quantidade e qualidade.

Considerando todas estas questões, bem como as vantagens e desvantagens do sistema das universidades federais e públicas em geral, temos que concluir que se trata de um sistema que foi construído com muitos sacrifícios, principalmente de seus professores/pesquisadores, e que já atingiu um grau considerável de desenvolvimento, apesar da óbvia heterogeneidade entre as diferentes unidades. Boa ciência tem sido feita em muitos laboratórios. Como já foi dito, a existência de pesquisa é uma condição “sine qua non” para formar profissionais eficientes e capazes de criar inovação científica, cultural e tecnológica, e seria um retrocesso gigantesco por a perder tudo o que foi feito até hoje.

* Professor titular do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP , Presidente da Federação de Sociedades de Biologia Experimental (Fesbe)

>> Originalmente publicado em www.serprofessoruniversitario.pro.br


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